Professor da Ufac desenvolve estudo sobre ferroadas de arraia
Uma ameaça real oculta pelas águas brasileiras. Apesar da pouca pesquisa e do título incomum, ictismo, acidentes envolvendo peixes são mais corriqueiros (e sérios) do que se pode imaginar. Intoxicação, perfurações, queimaduras e lesões de diferentes intensidades estão entre os principais registros de incidentes com animais aquáticos.
No Acre, as arraias são destaque entre as espécies causadoras dessa interação — um fenômeno que chamou a atenção do professor do Laboratório de Biologia Animal da Universidade Federal do Acre (Ufac), André Casas, que pesquisa o tema há dois anos na região do Alto Juruá. Estudos preliminares coordenados pelo pesquisador indicam que a frequência de acidentes com arraias na região do Vale do Alto Juruá pode ser de um acidente a cada três dias em áreas rurais e urbanas. Um número que pode ser ainda maior.
“O que há de comum envolvendo interações negativas entre arraias e seres humanos, há de negligência. Dados oficiais sobre o número de acidentes envolvendo esses peixes são tímidos e não refletem, exatamente, a realidade, dada a frequente subnotificação: em muitos casos, a vítima do acidente sequer procura atendimento médico”, aponta Casas. “Não faz parte da nossa cultura associar um peixe ao perigo. Esse é um dos desafios. Falta interesse, conhecimento e pesquisa sobre o assunto, tanto para o homem comum quanto para o profissional de saúde.”
Amplamente distribuídas nas bacias hidrográficas de toda a costa brasileira e em praticamente todos os rios amazônicos, as arraias são, em geral, animais mansos que só atacam quando se sentem ameaçados. Um pisão acidental, por exemplo, aciona o mecanismo de defesa do peixe, que, ao agitar a cauda em formato de chicote, acaba atingindo o banhista ou pescador com seu ferrão.
“Foi a pior dor que já senti em toda a minha vida. Jamais vou esquecer e não é exagero. Foram 22 horas ininterruptas de dor”, resume o bombeiro militar Dácio Barbosa, que ainda carrega na perna direita a marca da ferroada sofrida há três anos. “Eu estava de férias e tinha acabado de pular na água quando senti aquela dor violenta. Fui para o hospital sem saber que tinha sido uma arraia. Lá me prescreveram uma injeção e uma pomada. Segui toda a orientação. Mesmo assim a região inteira necrosou.”
Semelhante a uma faca serrilhada, o ferrão do animal é recoberto por um tecido glandular que se rompe quando acionado, liberando o veneno no organismo da vítima e causando a dor aguda a que Barbosa se refere. “Além da dor, há relatos de diarreia, taquicardia e vômitos”, destaca Casas.
Pesquisa
Apesar dos avanços, a ciência ainda não descobriu uma soroterapia — método utilizado no tratamento contra picadas de cobras peçonhentas, escorpiões e aranhas — eficaz contra ferroadas de arraias. Para alívio dos sintomas, o que já ficou comprovado, em laboratório, é o efeito positivo de água em temperatura elevada. “De tudo o que se pode fazer em casa, a compressa de água quente é a única medida indicada, isso porque já se sabe que a toxina injetada pelo ferrão é proteica e, portanto, sensível ao calor”, explica o pesquisador. “Borra de café, urina, creme dental. Nada disso vai ajudar na cicatrização do ferimento. Ao contrário. A ausência do cuidado especializado pode ocasionar uma necrose muito grave na região atingida.”
No campus Floresta, as pesquisas com análise microscópica dos ferrões das arraias avançam, em colaboração com o Laboratório de Técnicas Imunológicas Aplicadas à Morfofisiologia (LTIAM), da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), coordenado pelo professor José Roberto Kfoury Júnior. “A pesquisa sobre ictismo é ainda incipiente. Começamos os estudos do zero aqui na região do Alto Juruá. Precisamos documentar, inclusive, quais espécies são encontradas na região e os acidentes que provocam, porque mesmo essas informações nos faltam”, diz Casas.
O estudo preliminar sobre acidentes provocados por arraias de água doce no Vale do Alto Juruá, realizado pela estudante do curso de Enfermagem de Cruzeiro do Sul, Greiciane Amorim, com os professores André Casas e Tiago Lucena, e apresentado no 21º Encontro Brasileiro de Ictiologia, realizado em fevereiro do ano passado, apontou a ocorrência de duas espécies na região: ‘Paratrygon aiereba’ (arraia maçã) e ‘Potamotrygon motoro’ (arraia pintadinha).
A pesquisa confirmou a frequência maior de ictismo em seringais, mas apontou uma ocorrência crescente entre moradores de áreas urbanas e periurbanas, casos não reportados anteriormente na literatura para a região. “Esse foi um dado bastante interessante dessa nossa abordagem preliminar, pois, até então, acreditava-se que os acidentes ocorriam restritamente em regiões rurais ou de seringais. O que notamos é que a prática do lazer associada a banhos, rios e igarapés das cidades do Vale do Alto Juruá acaba por expor uma parte significativa da população aos acidentes”, avalia Casas.
De acordo com o pesquisador, a expectativa futura, com o avanço da pesquisa, é para busca de alternativas para tratamento contra ferroada. “Queremos poder analisar as estruturas microscópicas dos ferrões das arraias. No futuro, podemos, talvez, desenvolver um repelente contra eles. Isso é feito contra tubarões; não seria diferente com arraias. Precisamos, é claro, avançar nas pesquisas e essa colaboração do LTIAM é importantíssima”, diz Casas. A mortandade indiscriminada de arraias pode levar a severos desequilíbrios ambientais. “Mesmo sem ser um animal violento, hoje, a arraia é vista como a grande vilã pelos ribeirinhos, que não deixam de sacrificar o animal. Essa é uma cultura que precisa mudar. Esses animais são importantes para o equilíbrio ambiental.”
Postado em: 11/2/2016