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Vestibular e “vestibulinho”: um falso debate

por ricardo publicado 31/03/2011 15h49, última modificação 31/03/2011 15h49

Toda a encenação  sobre  o  último  concurso  vestibular  da Universidade Federal  do  Acre  (Ufac),  especialmente,  a  que  envolve  um  determinado conjunto  de  parlamentares  acreanos,  coloca  em  evidência  não  apenas  o despreparo  desses  “representantes  do  povo”,  mas,  principalmente,  a  mais completa  incompreensão  sobre  o  que  significa  uma  instituição  publica  de ensino superior.

A  Lei  de  Diretrizes  e  Bases  da  Educação  (LDB),  em  seu  artigo  56, preconiza  que  as  “instituições  públicas  de  educação  superior  obedecerão  ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos,  de  que  participarão  os  segmentos  da  comunidade  institucional, local  e  regional”. No  espectro  dessa  “gestão  democrática”,  nenhum  reitor  ou pró-reitor  pode  decidir  sobre  os  certames  públicos,  a  criação  ou  extinção  de cursos e programas de ensino, as ações de pesquisa e extensão ou quaisquer outras  decisões  que  extrapolem  os  limites  das  instâncias  administrativas  e executivas.

O  concurso  vestibular,  assim  como  os  demais  concursos  públicos, realizados no âmbito da Ufac, com suas regras, perfis, vagas e tudo o que lhes seja pertinente,  sob o manto do que  reza a  legislação em  vigor,  são alvo de discussão  e  deliberação  pelos  órgãos  colegiados  desta  instituição  e, principalmente,  pelo Conselho Universitário,  instância máxima  deliberativa  no nível acadêmico e administrativo. Portanto, nada, absolutamente nada, poderia ou pode ser decidido ou alvo de acordo da administração da universidade com o Ministério Público Federal, deputados ou candidatos ao vestibular, sem ferir a gestão colegiada e, invariavelmente, à legislação.

Sob  a  vazia  retórica  da  “defesa  da  sociedade”  e  visivelmente desorientado, um conjunto de deputados estaduais  tem feito ecoar a repetitiva cantilena  de  que  a  “Ufac  descumpriu  o acordo  feito  com  o MPF”,  “a Ufac  foi desonesta”,  “a  Ufac  traiu  os  deputados  e  o MPF”,  “a  Ufac  fez molecagem”, etecetera. Um desses parlamentares foi um pouco mais longe e disparou que o  “Conselho  Universitário  da  Ufac  é  conservador,  retrógrado  e  injusto.  Ousa desrespeitar a vontade do povo do Acre. Nos faz de palhaços depois de acordo firmado” (sic).

Nessas  intervenções  palavrosas,  residem  alguns  equívocos  e  muito desconhecimento de causa. Creio que o principal deles é tratar a Ufac como se fosse uma pessoa com vontade própria, desejos, sonhos, CPF, RG, e não uma instituição  pública.  Daí  as  pérolas:  “a  Ufac  traiu;  descumpriu;  desacordou; mentiu; enganou”, entre outros termos que, pela frequência com que aparecem na boca de “nossos representantes”, parecem muito naturais em seus afazeres cotidianos.  Por  que  não  “dar  nome  aos  bois”,  como  se  diz  no  popular,  e apresentar à sociedade os termos do acordo e seus signatários? Quem usou o nome da Ufac para  fazer acordo? Quem  fez,  indevida e  imoralmente, acordo com a coisa pública?

Somente as mentes obtusas e  incapazes de conviver na arena pública concebem a  verdade como  coisa única, atávica,  imutável. A  filósofa Marilena Chauí  nos  chama  a  atenção  para  a  necessidade  de  aceitarmos  os  “conflitos entre concepções que se propõem a dizer a verdade”,  isso porque a verdade não  é  um  dado  “natural”  que  brota  da  terra.  A  “verdade  é  um  trabalho  do pensamento,  um  esforço  de  questionamento,  uma  maneira  de  interrogar  o mundo”,  prossegue,  convidando-nos  a  abrir  os  olhos  e  apreender  o  mundo como  algo  infinitamente maior  e  inalcançável  ao  filtro  de  nossas  certezas  e pretensões individuais.

Os equívocos e excessos cometidos pelos profissionais que elaboraram e fizeram cumprir as regras estabelecidas para normatizar o certame vestibular não podem ser utilizados como moeda de troca para que se acenda “uma vela para  Deus  e  outra  para  o  diabo”,  como  defendem  muitos  dos  que  têm  se manifestado  sobre  a  questão.  Nesse  sentido,  é  recomendável  a  leitura  da sentença exarada pelo Juiz Federal Jair Facundes que, frente a essa situação complexa e polêmica, posiciona-se em busca do melhor meio de fazer valer a força  da  justiça  para  a  maioria  e  “em  tempo  socialmente  aceitável”,  sem alimentar  falsas  ilusões  para  a  minoria  injustiçada,  à  qual  sugere  reparos individuais, e sem propor pactos imorais com a res publica.

Penso  que manter  o  resultado  do  vestibular,  pelo  qual  todas  as  2030 vagas ofertadas pela Ufac  foram preenchidas e, ao mesmo  tempo,  fazer uma “nova prova”, um  “vestibulinho”, exclusivamente para aqueles  candidatos que foram  impedidos  de  fazer  as  provas,  como  têm  proposto  determinados parlamentares, não passa de palavras ocas de quem ou não compreende nada da  questão  em  que  está  se  intrometendo,  ou  está  decididamente  tentando ludibriar a boa fé da opinião pública em proveito próprio.

Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento sobre os procedimentos acadêmicos  e  o  funcionamento  interno  da  Ufac  sabe  que  as  únicas  opções colocadas eram, por um  lado, manter o vestibular e fazer valer os direitos dos aprovados  por mérito  e  esforço  próprios  e  de  seus  familiares;  ou,  por  outro lado,  anular  tal  certame,  levando  em  consideração  as  injustiças  e  erros cometidos  e  realizar  um  novo  concurso  para  todos  os  candidatos  inscritos  e todos os demais que desejassem se inscrever.

Aí  reside  o  problema  central  que  a  maioria  dos  deputados  e  outras pessoas  que  têm  discutido  a  questão não  assumem, porque  isso  implica  em fazer escolhas e escolher significa, antes de tudo, assumir uma conduta ou um caminho a seguir e deixar outros de fora; significa  ter a coragem de “correr os riscos”  de  se manifestar  por  uma  das  posições  em  debate;  significa  ter  uma postura ética e não ficar tentando “agradar a gregos e troianos”.

Fugir  desse  debate,  sob  o  pretexto  de  “assegurar  os  direitos  dos aprovados” e, sem nenhuma reflexão quanto aos efeitos e desdobramentos de tal proposta exigir que a “Ufac” cumpra um acordo - imoralmente proposto – de “dar as vagas” ou  fazer uma  “nova prova” para pouco mais de duas centenas de candidatos, é algo falacioso e  inviável. Em primeiro  lugar, porque as vagas já foram totalmente preenchidas e não há nada que macule o mérito e o direito dos candidatos aprovados; em segundo, porque nenhuma instituição federal de ensino superior pode abrir um certame de admissão em seus cursos para um público  restrito,  posto  que  fere  a  isonomia;  em  terceiro,  porque,  para  abrir novas vagas nos cursos existentes, faz-se necessária a realização de todo um processo de discussão, reformulação e aprovação de novos Projetos Políticos Pedagógicos  pelos  colegiados  da  instituição  e  isso  nenhum  grupo  de  profissionais, minimamente responsável, de qualquer um dos cursos desta Ifes faz  da  noite  para  o  dia,  especialmente,  para  atender  propostas  exógenas  ao funcionamento da universidade.

A  discussão  sobre manter  o  vestibular  e  fazer  um  “vestibulinho”,  nada mais  é  que  um  falso  debate.  Se  os  deputados  que  estão  envolvidos  nessa “desorientada  causa”  estivessem  de  fato  interessados  em  discutir  a universidade e, principalmente, em assegurar o direito de todos em ter acesso ao ensino superior, a primeira coisa a  fazer seria  lutar para  fazer valer o que estabelece o artigo 205 da Constituição Federal, que define a educação como um  “direito  de  todos  e  dever  do  Estado  e  da  família”  a  ser  “promovida  e incentivada  com  a  colaboração  da  sociedade,  visando  ao  pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Nos  marcos  dos  processos  vestibulares,  reside  o  desrespeito  a  esse direito  de  todos.  Isso  se  evidencia  de  forma  caricatural  quando  nos  damos conta de que nem mesmo todos os aprovados têm as vagas asseguradas nos cursos  de  suas  escolhas.  Isso  porque,  com  o  número  limitado  de  vagas,  a maioria  dos  candidatos  aprovados  fica  em  listas  de  espera,  aguardando desistências que nunca atendem a todos os que estão nessa condição.

Não  obstante,  se  os  deputados  (situacionistas  e  oposicionistas) estivessem,  verdadeiramente,  interessados  em  defender  os  direitos  dos estudantes  que  desejam  ter  acesso  à  universidade  pública,  gratuita  e  de qualidade, deveriam aproveitar este momento e exigir que o Governo do Acre, ao  invés  de  criar  um  Prouni  estadual  para  jogar  verbas  públicas  nas universidades privadas, formulasse um amplo programa de universidade aberta e,  em  parceria  com  a  Ufac,  ampliasse  a  capacidade  desta  instituição  para atender  ao  maior  número  possível  de  jovens  aptos  e  dispostos  ao  ensino superior.

O acesso a esse programa de formação poderia, inclusive, proporcionar uma  oxigenação  do  debate  sobre  as  formas  de  ingresso  e  permanência  na universidade,  as  condições  de  oferta,  bem  como  o  fortalecimento  do  tripé  ensino-pesquisa-extensão  que  é  uma  condição  básica  para  o  ensino  e  a formação universitária.

Para  finalizar, gostaria de  ressaltar minha posição de defesa da Ufac, num momento de conivente omissão e silêncio da maioria dos meus pares – e ímpares. Não a defesa dos erros, violências, equívocos, incoerências e práticas anti-acadêmicas  que,  muitas  vezes,  aqui  se  pratica;  não  a  defesa  de programas  e  políticas  de  ensino  impostas  pelo  Ministério  da  Educação  e aceitas  acriticamente  por  várias  unidades  acadêmicas;  não  a  relação  de subalternidade  que  tem  se  estabelecido  nas  “parcerias”  com  o  Governo  do Estado  e  na  montagem  de  palanques  para  certos  deputados  da  bancada federal, em troca de verbas das emendas parlamentares.

Mas  a  defesa  de  uma  instituição  que é maior  que  tudo  isso. A  defesa dos  enormes  serviços  prestados  pela  Universidade  Federal  do  Acre,  nos últimos  quarenta  anos,  principalmente,  na  formação  de  professores  e  outros profissionais em diferentes áreas do conhecimento; na  formação de gerações de  acreanos  e  de  pessoas  provenientes  de  inúmeros  outros  estados  que tiveram  acesso  à  educação  superior  e,  naturalmente,  possibilidades  de melhorias  em  sua  condição  social  por  intermédio  desta  instituição  pública  e gratuita de ensino.

A  defesa  de  uma  instituição  que,  para  além  das  possibilidades individuais,  tem  interferido  diretamente  na  formação  e/ou  consolidação  de outras instituições sociais e do próprio poder público no Acre. Qualquer pessoa que  tenha  vivido  neste  Estado,  no  último  meio  século,  sabe  do  papel desempenhado pela Ufac, em nível regional.

A  construção  desta  instituição  não  tem  sido  tarefa  fácil,  posto  que  a mesma é fruto do trabalho, esforço, limites e dedicação humanas. O que é feito hoje na Ufac é dar prosseguimento ao colossal trabalho dos que vieram antes, numa  época  em  que  se  contava  nos  dedos  aqueles  que  tinham  formação superior  nesta  parte  da  Amazônia.  Dentre  os  milhares  de  profissionais formados pela Ufac, muitos ganharam projeção  local, nacional e internacional. É  preciso  recordar  isso  todos  os  dias,  principalmente,  num  momento  como esse, em que a crítica  fácil e artificial graça nas bocas daqueles que  tratam a  instituição como  “traidora”,  “desonesta”,  “conservadora”,  “retrógrada”,  “injusta”, numa redução completamente anacrônica e a-histórica.

Nos  últimos  27  anos,  tenho  vivido  na  Ufac  e  nunca  deixei  de  me manifestar, interna ou externamente, quanto às omissões e erros cometidos em seu interior Mas é preciso reconhecer que se os erros foram muitos, os acertos também foram e o melhor juízo para avaliar qual dos dois tem maior peso deve ser  medido  não  pelas  vontades  e  interesses  circunstanciais,  mas  por indicadores que atentem de forma concreta para a importância e o papel social exercido por esta universidade, para todo o Acre.

Nessa  condição,  creio  na  necessidade  de  se  fazer  a  defesa  da instituição e de sua gestão colegiada. Reconhecer, discutir e corrigir os erros cometidos  no  âmbito  desta  Ifes  não  pode  ser  algo  a  ser  feito  sobre  seus escombros e cinzas. Para aqueles que foram formados pela Ufac e que sofrem da estranha patologia de afirmar pelos quatro cantos que esta instituição “nada faz”,  só  nos  resta  lamentar.  Para  os  professores,  estudantes  e  técnico-administrativos  que  compõem  a  comunidade  universitária,  a  omissão  e  a crença  na  lógica  do  “quanto  pior  melhor”  é  o  caminho  mais  nefasto  a  ser seguido.

Rio Branco, Acre, março de 2011
Gerson R. Albuquerque
Professor associado
Centro de Educação, Letras e Artes
Universidade Federal do Acre