A (de)formação da burocracia pública acreana
José Porfiro da Silva
A palavra burocracia lembra-nos a idéia de funcionários arrogantes e instituidores de diferenças, dos quais o trabalho se caracteriza por um formalismo ineficaz, desanimado, lento e desorganizado; basta o indivíduo ser atendido em qualquer organização acreana, sem prévia intermediação de terceiros, para apreender e entender o que isso significa. Entretanto, Max Weber, no livro "Economia e sociedade" (Editora da UnB), pensa diferente. Para ele, a organização burocrática mostra-se mais eficaz, rápida e competente do que quaisquer outras formas de organização do trabalho.
Se a organização burocrática funciona bem ou não, o fato é que todo indivíduo está subordinado a ela. Seja na escola, no posto de saúde, no banco, na delegacia, no consultório, seja no cartório, no departamento de trânsito, no IML, na Prefeitura, depende-se da burocracia e, portanto, de burocratas de diferentes matizes: abnegados, corruptos, etc.
Ainda não existe no Acre uma pesquisa para saber qual a organização que melhor atende a população. Mesmo assim, podemos afirmar que o cemitério é o local que menos acolhe reclamações; o coveiro é o burocrata mais eficaz de nosso estado. Poucos defuntos rezingam maus tratos, em comparação com os clientes da burocracia da Eletroacre, Saerb, do Pronto-socorro, e demais organizações prestadoras de serviços à população.
No Acre, a formação da burocracia, particularmente da administração pública, divide-se em duas épocas bem claras, em termos de formalidade: antes e depois da promulgação da Constituição de 1988, quando se estendeu para todas as esferas do setor público brasileiro a obrigatoriedade de concurso público para selecionar o servidor que desejasse ingressar na administração pública, tanto direta (secretarias de estado e municipais, etc.), quanto indireta (fundação, empresa pública, sociedade de economia mista).
A época antes da promulgação da Constituição de 1988 pode ser subdividida em dois períodos: da década de 1960 ao ano 1982 e do ano de 1983 a 1988, considerando apenas o momento a partir do qual o Acre foi transformado em estado, 1962. No primeiro período (1962-1982), excluindo-se a temporada do governo José Guiomard dos Santos (1963-1964), foi de construção e invenção de uma burocracia acreana formada por um conjunto de militares, políticos, técnico-políticos e embriões de técnicos, produto da organização institucional do extinto Território do Acre e da desmantelada economia extrativa da borracha. Noutras palavras, o sumo ideológico, político, social, cultural do que respingou do regime militar no espaço acreano.
O segundo período (1983-1988), de forte inflexão política e social, foi caracterizado pela emergência de outro grupo de políticos, técnico-políticos e quase técnicos, vinculado à oposição política do grupo anterior. Este, trouxe do grupo anterior o caráter autoritário e arbitrário. Iniciaram a lotear a burocracia acreana em 1983, e parte dele foi deslocado em 1990.
Neste segundo período (1983-1988) da era antes da promulgação da Constituição de 1988, a burocracia foi significativamente modificada e transformada, tanto em tamanho, quanto em complexidade. Especificamente no governo Nabor Júnior (1983-1985), a quantidade de funcionários estaduais aumentou em mais de 100%. Um governo marcado pelo slogan "participação e mudanças", iniciou ameaçando toda a burocracia anterior e seus burocratas, prometendo dossiês de corrupção, sendo o Deracre o órgão mais marcado. As promessas de CPIs não prosperaram e o governo foi obrigado a engolir os prometidos dossiês; como não foi para valer a promessa de conter a corrupção, os burocratas se sentiram livres.
De acordo com os jornais de 1983-1985, apareceram as irregularidades na Secretaria de Saúde (José Alberto), na Secretaria de Transportes (Rubens Branquinho), na Secretaria de Obras (Cláudio Gastão Kipper), etc. Políticos, como Ruy Lino, Geraldo Fleming enfastiavam-se, pelo menos publicamente, de solicitar punição e afastamento de burocratas envolvidos em corrupção.
Nabor Júnior pousava de urubu-rei (uma ave rara), sem controle da burocracia do estado, onde se admitia funcionários sem controle e destruía-se boa parte do que já existia. Este urubu-rei pode ser comparado ao quarto Presidente da República brasileira, Campos Sales (nov./1898-nov./1902), que se manteve quase puro até o fim da vida, morrendo na quebradeira, mas ao mesmo tempo carregando em seu governo um segmento que esfolava o patrimônio público.
Nabor júnior não morrerá como Campos Sales, no entanto, pode ser comparado a ele como um político bom, tão bom, que não prestou, pelo menos para aperfeiçoar a burocracia acreana; somente observou, estacionado, com sua bondade, seus fiéis comprando e pagando seus pecados. Um urubu-rei que ainda em vida presenciou o crescimento do monstro da burocracia que ajudou a criar e viu-a durante a década de 90 sem condições de funcionamento; talvez não a presencie funcionando adequadamente, daqui a 15, 30 ou 50 anos. Seria demais para as almas.
Os dois grupos da burocracia acreana, pré-Constituição de 1988, tinham em comum o fato de darem suporte a um conjunto de famílias de "griffe", herméticas, tradicionalmente conhecidas do público acreano. Estas famílias são essencialmente patrimonialistas, visto que seus ganhos provêm, direta ou indiretamente, não de atividades econômicas e sim do Estado.
Ao mesmo tempo, elas têm influência direta nos destinos da burocracia local, pois sempre estão dentro dos órgãos estatais, ocupando cargos de direção ou vendendo e comprando para o governo, independente do grupo político que esteja governando o estado. A maior e melhor qualidade cultural dessas famílias é o conhecimento que possuem das infidelidades conjugais que acontecem no interior e ao redor delas.
Estas famílias foram formadas pela decadência de antigos proprietários rurais e comerciantes, que ao perderem suas rendas, seja da terra, seja mercantil, vão se tornando cada vez mais burocráticas e patrimonialistas, pois tanto suas rendas, quanto suas riquezas se confundem com o patrimônio do Estado. Quando uma parcela não está no controle do governo, a luta é encarniçada para retornar; vide o caráter das disputas políticas a partir dos anos de 1980, com acirramento máximo nos últimos anos.
Diferente de outras regiões brasileiras que possuíam este tipo de camada social, há um século, onde se arrecadavam impostos de segmentos mercantis para sustentá-las, aqui, com a insignificância da economia da borracha, esses impostos vêm de outras regiões do país para sustentar essas famílias de "griffe" e o grande número de funcionários subordinado-as por laços políticos, sociais e de poder. Noutras palavras, lutam sem trégua para se apropriar do excedente estatal, pois as atividades econômicas não são suficientes para sustentá-las. Mesmo que esteja, às vezes vinculados às tarefas privadas, não se soltam dos afazeres de esbulhar o patrimônio estatal.
A era pré-Constituição de 1988 foi caracterizada pela oposição entre os dois grupos (no geral), seja no primeiro período (1962-1982), seja no segundo período (1983-1988). Na era pós-Constituição de 1988, vai acontecer algumas mudanças. No entanto, a burocracia da administração pública acreana já estava construída para os anos posteriores. As atitudes discricionárias (com certa dose de arbitrariedade) dos governos anteriores estariam reduzidas, tanto pelas limitações legais provenientes da Constituição, quanto pelas dificuldades econômico-financeiras que o Estado brasileiro vem passando desde o final da década de 1980.
Na era pré-Constituição de 1988, o ponto de inflexão (mudança acentuada) foi a eleição de 1982, na era pós-Constituição, deu-se duas fortes rearrumações na composição da burocracia acreana. A primeira, com a eleição de Edmundo Pinto, em 1990, quando trouxe de volta para o poder político e burocrático do estado grande parte dos políticos, técnicos-políticos e os técnicos remanescentes do período pré-1983, juntamente com uma parcela dos técnicos políticos e técnicos pós-1983; ou seja, a formatação do governo de 1990 foi uma combinação da nata pré-1983, com uma reciclagem de oportunistas pós-1983. Foi o embrião da fusão entre os dois grupos da fase pré-Constituição de 1988; agora totalmente unidos.
Esta burocracia atravessou situações conturbadas, como o assassinato de Edmundo Pinto (1992), o (des)governo Romildo Magalhães e o governo Orleir Cameli (1955-1998). O aprofundamento da crise da burocracia acreana, produziu a segunda rearrumação na composição da burocracia acreana, levando ao poder político do estado, em 1999, um grupo de burocratas formado por políticos, técnicos-políticos [com ramificações em todos os períodos (de 1962 a 1998)] e técnicos novos e velhos de todas as origens. Isto é, a formatação da atual burocracia estatal, foi uma rearrumação precária das forças patrimonialistas pré-1983, junto com um segmento das forças nascidas no pós-1983 e de um conjunto de forças flutuantes surgidas durante os anos 80 e 90. Podemos afirmar que a atual burocracia ainda é essencialmente patrimonialista, porque seu poder e sua renda derivam direta ou indiretamente do patrimônio do Estado.
Retornando à burocracia em si, Weber a define como uma forma de gestão racional, impessoal, afastada da sociedade e exercida por especialistas, que encaram o trabalho como carreira e não como uma atividade temporária, exercida por um certo período. Ou seja, é baseada na lei, na formalidade, na racionalidade, na divisão de tarefas, impessoalidade nas relações, na hierarquia da autoridade, nas rotinas e procedimentos padronizados, na competência técnica e meritorática, na especialização, na profissionalização, e na total previsibilidade de funcionamento.
Assim sendo, o tipo ideal da burocracia weberiana representaria a maneira mais justa e mais eficaz de dominação ou de autoridade nas organizações, incluindo as públicas. Luís Cardoso da Silva (na tese "Após-fordismo e participação"), sintetiza as características e os traços diferenciadores dessa idéia weberiana: "a) Seus membros ou funcionários constituem-se como profissionais, qualificados, recrutados e remunerados para o exercício de funções específicas do modo de dominação; b) cada um desses membros ocupa um emprego ou posição definida em uma hierarquia de status; c) o poder é fundado sobre a competência e não pelo costume ou pela força; d) o funcionamento burocrático inscreve-se num modelo de regulamentação impessoal, no qual abdica-se da arbitrariedade, do clientelismo ou de decisões não fundadas na razão do direito; e) a execução prática das tarefas é dividida em funções especializadas... metodicamente definidas; f) o comando e o controle são atividades garantidas pela existência de uma hierarquia, e g) o encarreiramento é regulado por critérios objetivos, tais como a antigüidade, a qualificação e a competência, com vistas à limitação de favoritismos pessoais." (p. 108).
Esse tipo ideal weberiano de burocracia não se aproxima do estilo e modo de funcionamento de todas as organizações da burocracia acreana, particularmente a burocracia da administração pública. Apenas as características de especialização e hierarquia são traços que mantêm as organizações da administração pública como burocracia. Isso porque a legislação obriga que assim seja, mesmo que somente no formato. As demais características são reféns do processo de formação e composição da burocracia do Acre.
O que predomina são critérios administrativos pessoais sem preocupação com a eficiência estatal. Sendo que os procedimentos racional-legais são os mais sacrificados pelos burocratas acreanos, visto que constituem um complexo sistema de agregados e clientes em torno de si, sustentado pelo estado, confundindo o patrimônio privado com o estatal. Fato explicado pelo próprio modo de formação e constituição da burocracia local. Nesse sentido, deve-se considerar profundamente a própria idéia weberiana de tipo ideal, senão perde-se a perspectiva de compreensão.
Esta elite burocracia acreana, com ramificações variadas, sintetizada no imbróglio de funcionários públicos em cargos sem funções a executar, dada a função do Estado patrimonial de lhes garantir emprego e sobrevivência.
O que une esta burocracia é o caráter ideológico que perpassa seu inconsciente, o fato de acreditarem, conforme N. Poulantzas, que estão num espaço neutro, dentro dos aparelhos estatais, representando o interesse e a vontade geral da população. É essa a ideologia que o Estado reproduz para manter a ordem dos aparelhos governamentais e a unidade da burocracia. Concretamente, une-a a necessidade de manterem o padrão de vida que alcançaram em períodos anteriores, neste sentido, utilizam todos os meios disponíveis para assegurarem os rendimentos necessários.
Particularmente somos céticos em relação à burocracia. No entanto, é importante entendermos sua lógica de funcionamento para não ficarmos amarrados e tontos com sua complexidade, segundo Gilda Gouvêa (Burocracia e elites burocráticas): a) atribuir-lhe um papel fundamental no processo decisório da administração pública; b) negar-lhe qualquer participação importante, atribuindo-lhe somente a função de executora de decisões definidas noutros esferas de poder; c) conferir-lhe um exagerado caráter negativo, em função de sua morosidade, rotina, ineficiência, corrupção e fisiologismo; d) dar-lhe eficiência apenas no atendimento dos interesses dos dominadores; e) ou conforme os próprios burocratas, mostrá-la como isenta, útil e indispensável ao funcionamento estatal, ou seja, como a verdadeira responsável pela defesa do interesse público.
Finalizando, em nível nacional, mediante a noção de insulamento burocrático, temos o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), como exemplo de organização burocrática mais eficiente do país, no período dos governos de Juscelino Kubitchek e militar. E aqui no Acre, excluindo a instituição cemitério, onde poderíamos encontrar uma organização semelhante ao BNDES. Talvez o insulamento dos órgãos burocráticos que empregam grupos de famílias herméticas, tais como... O tipo ideal weberiano, por ser tipo ideal, ficaria cada vez mais afastado da burocracia patrimonialista acreana.