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Futebol brasileiro - I

por petrolitano publicado 08/11/2011 15h44, última modificação 08/11/2011 15h44
Jornal Página 20, 19.07.2001

Raimundo F. Souza

Ópio do povo, razão das cachaças, alegria dos pobres, instrumento para desviar a atenção das pessoas, orgulho dos brasileiros... Sobre todos os pontos de vista, o futebol brasileiro já foi interpretado, explicado e analisado. Entre os teóricos que tentaram descrever a popularidade desse esporte, uma das primeiras interpretações foi de Gilberto Freyre (1964), que destacou o caráter mestiço do povo (encontro entre brancos, negros e índios), base da nação de democracia racial, como sendo a maior razão pelo sucesso do esporte e, conseqüentemente, a representação viva da “alma brasileira”.

Essas explicações “racistas”, segundo o ponto de vista de outros teóricos, não conseguiram explicar a essência nem a importância do futebol. Pelo contrário, de certa forma, conseguiram depreciar o aspecto positivo do nacionalismo e ainda associar o futebol à constituição ética da nação, esquecendo, inclusive, que a história do nacionalismo surgiu antes da pratica do esporte.

Sobre uma análise “universalista” e ao mesmo tempo realista para o caso brasileiro, o futebol promove uma horizontalização dos relacionamentos na sociedade, uma vez que a igualdade é uma condição básica para a disputa (ou jogo), estabelecendo paridade para todas as pessoas envolvidas no campo esportivo. Essas condições estimulam formas modernas de concepção social, inclusive de cidadania. Proporcionam, ainda, experiência exemplar de legitimidade e de acatamento de leis, bem como a criação de espaços essencialmente democráticos. E, apesar da convivência constante com o contraditório, o futebol mantém um clima de intensa igualdade, o que certamente explica o sucesso do esporte entre nós. 

A idéia de futebol criativo relacionado às características do povo brasileiro, desde o início, foi a maior responsável pela rotulação e divulgação do estilo, denominado futebol-arte, como sendo a marca nacional. E essa característica contribuiu sobremaneira para mudar o conceito e o preconceito de esporte elitizado (time formado só por brancos e por representantes da alta sociedade), pois passou a ser entendido que a miscigenação, além de representar a autêntica cultura brasileira, colocava o Brasil em destaque em relação aos outros países.

Ocorreu que, a partir de 1974, esse modelo entra em crise, devido aos fracassos da seleção nacional. A partir de então, inicia-se a discussão sobre a tal modernização no futebol brasileiro - que deveria ser mais tático, ou melhor, mais “europeu” e menos “artístico”. Após uma série de debates, desportistas e dirigentes de futebol chegaram a um consenso de que, a partir daquele momento, o futebol brasileiro deveria voltar-se para a prática do futebol “moderno”, disciplinado, forte, combativo, bem preparado fisicamente e taticamente consciente. No entanto, deveria continuar convivendo com o jogador criativo e talentoso, que desequilibra o jogo tático, ou seja, o fatebol-arte deveria sobreviver no jogador que sozinho desequilibrava a partida com lances de magia.

A correspondência entre futebol-arte e nação não é exclusiva nem baseada em preferência absoluta, todavia, persiste entre nós combinando-se criatividade com outros modelos e estilos. O drama social provocado pela oposição entre “futebol-força” e “futebol-arte” termina por conciliar o contraste por meio de um “arranjo” ou talvez um “jeitinho brasileiro”, que introduz a técnica do futebol-arte no seio do futebol moderno.

Na seleção de 1994, por mais taticamente moderna que fosse, brilhavam “brasileiramente” as jogadas nos pés de Romário e ainda de Ronaldinho, ou seja, continuamos assim “brasileiros”, “malandros” no jeito de jogar, tendo, entretanto, adotado a idéia moderna e européia do “futebol tático”. O futebol-arte ainda é nosso referencial, segundo o qual a nossa fé no futebol tem como fonte exclusiva os resultados das campanhas da seleção.

Se abandonarmos essa visão e tornarmos o futebol como uma “instituição total” e empresarial, na essência do termo, perceberemos que o futebol vai além da analogia com a nação. Torna-se um dos instrumentos brasileiros de pensar e de, sobretudo, classificar o nosso país no mundo. Ou seja, a nação brasileira não é apenas configurada no futebol, ela passa a “existir” como algo concreto e palpável através das imagens constituídas a partir desse esporte.

Entender o futebol constitui entender uma dimensão importante na nação brasileira. E mais, entender a nossa cultura como um princípio arbitrário de ordenação da realidade e de organização da sociedade brasileira, dentro de um sistema que foi se formando ao longo do século XX, a partir da imensa popularidade do futebol, alicerçado por uma das raras linguagens que unifica os brasileiros dos mais variados segmentos sociais. 

A partir de 1930, quando o futebol se firma como esporte mais popular do Brasil, os clubes (até então muito elitizados) tiveram que profissionalizar seus quadros, passando a contratar os melhores jogadores da praça, e foram obrigados também a manter nos times atletas de todas as raças e cores e de todos os segmentos sociais. O Vasco carioca foi o primeiro a sair na frente, formando um time “misto” que lhe rendeu a conquista de dois campeonatos (1924 e 1925). Depois veio o América e, em seguida, outros clubes seguiram o exemplo.

Na segunda parte será tratada a questão da paixão das torcidas e a realidade atual do futebol.