Hélio Melo, apenas um homem da Amazônia
* Dalmir Ferreira
Mais uma vez um simples seringueiro deixa a sua colocação e sem ser estadista, leva nosso nome aos confins do mundo. Canta, toca e nos conta histórias, pinta, escreve e propõe reflexões. E agora, para mostrar quão é ilusória a morte, parte para nos mostrar que continuará vivo em sua obra, cujo objetivo foi nos manter vivos, coisa que se diz que é de artista.
Entretanto, mais que um artista, Hélio Melo soube reunir em suas telas a cara de um Acre que estávamos esquecendo, ou deixando morrer. Em suas exposições, seus concertos, seus "causos", seus livros, enfim, com sua presença ativa, mais que nem um outro, ele nos falou de nós para nós mesmos, exercendo em sua simplicidade, um papel essencial de resgate e disseminação de nossa identidade.
Sua obra, sem ser uma tese acadêmica, é um tratado de acreanismo cuja repercussão soa no Acre, para o Acre e para o mundo, num século cuja principal característica é a expansão dominadora do capital. E é justamente contra essa dominação que impõe que esqueçamos nossas raízes, que ele levanta sua voz, propondo a consolidação de uma memória coletiva capaz de não ser subjugada.
Para entender essas coisas, temos que reconhecer que a obra principal do artista está por traz do que ele pinta, ou do que ele faz, e essa é uma leitura essencial, pois quase sempre detemos nossos olhos apenas ante o quadro e não somos capazes de vislumbrar além, a significação de sua proposta. Talvez por isso esse artista tenha alcançado grande reconhecimento no sul do país e no exterior, não sendo apenas um artista que pintava coisas pitorescas e às vezes incompreensíveis para nós, talvez porque santo de casa não faça milagre, ou talvez até pelo nosso desconhecimento do assunto.
Seu nome deve junta-se ao daqueles que estão construindo novos povos no planeta, e sua voz deve ser ouvida como uma exortação à dignidade humana, pelo que ele soube fazer pela cultura da nova gente acreana, pois cultura como se sabe, é coisa do homem que mora num certo lugar num certo tempo, é coisa de quem mora num chão que lhe é próprio, e disso toma uma consciência abrangente, ali cultivando as presenças elementares que o sustentam na vida e para além dela, desde sua casa, sua gente, seus deuses.
Hélio Melo, consciente de que cultura é uma categoria do ser, não do saber e do sentir, soube cunhar um ser humano curtido no tempo, mostrando a dignidade e o valor que nós temos, ante um presente em que as imagens, antropofágicas, vão se anulando em busca da sobrevivência.
O homem
Conheci Hélio Melo na década de 60, no tempo das catraias, mas nosso envolvimento se dá quando, já na década de setenta, num de meus retornos da mata (eu era topógrafo), trouxe uma rabeca, do rio Purus, e pedi que ele me desse umas aulas de música. Toda semana tinha um dia, que ele ia lá em casa e por 2 horas me explicaria sobre posições e notas, mas a mamãe, que gostava de ouvi-lo, sempre pedia para ele tocar essa e aquela valsinha, de forma que minhas aulas foram pro espaço.
Foi o início de um relacionamento em que tive o privilégio de poder estar muito perto de sua trajetória, e com ele ter desfrutado momentos inesquecíveis, como foi o caso de uma certa "serenata" às 3 da madrugada, que me valeu um retorno inesperado. Não sei se também por ter nascido e vivido uma infância em seringal, tivemos um entendimento imorredouro.
Mas foi na pintura, já no final da década de 70, que tivemos mais diálogos, não só na elaboração, mas no sentido de seu discurso, que iniciava. Nesse período, tive um afastamento de 10 anos, e ao retornar já o encontrei um homem público, com um discurso consolidado, e demos continuidade às visitas recíprocas, e já bem recentemente, o Silvio, Jorge Nazaré, e o Danilo, com uma proposta de gravação de um vídeo (A peleja de Hélio Melo com o Mapinguari) do qual participaram além do protagonista, o Ivan de Castela. Esse vídeo me proporcionou um aprofundamento no conhecimento sobre Hélio Melo. Tivemos que ir até Boca do Acre, e de lá até a boca do rio Antimari no rio Acre, fazendo uma revisitação, pelos lugares onde ele nasceu e onde foi criado.
Foi quando fui descobrir porque ele conseguia reunir tão bem a história de nossa formação histórica. Descendente de João Gabriel, pioneiro desbravador do Acre, cuja história foi contada por um outro parente seu de Boca do Acre, o memorialista Mário Diogo, e também parente seu de outra linhagem o poeta amazonense Tiago de Melo. Com esses recortes, podemos formar uma idéia dos complexos caminhos da formação de um artista, de forma que por traz daquela simplicidade que acostumamos a ver, estava uma pessoa com uma bagagem de conhecimentos, cuja manifestação não poderia ser diferente.
Nesse vídeo pudemos também entender a complicada trama de sua migração para a cidade, num período representativo da nova formação urbana que se esboçava, a luta pela sobrevivência e os percalços que foram construindo um universo muito próximo ao que é o nosso universo.
A obra
Homem simples, vindo do seringal, o pouco estudo não impediu as iniciativas que teve que tomar. Como pintor primitivista, ele ganha um destaque só comparável ao de Chico da Silva, que é o outro acreano de maior destaque nesta área, mas o cunho social de seu trabalho superou aos demais, ganhando uma relevância que se estendeu desde a Europa até os EUA, e pelo resto do mundo, mostrando a memória do surgimento da borracha, que garantiu para o mundo um passo gigantesco em sua evolução, e para nós o nascimento de um povo com uma cultura nova, própria, pelo que representou as mais diversas contribuições étnicas e culturais.
Hélio Melo nos falou dessas coisas, e em sua linguagem, soube dar destaque a essa ilha de cultura, que é o Acre, entre as diversas ilhas culturais que compõe a Amazônia, propondo uma ecologia própria, única forma de sobrevivência na pluriculturalidade que exige, não uma xenofobia cega, mas uma integração consciente e criativa, para seu verdadeiro desenvolvimento.
* Artista plástico