Idas e vindas de seringueiros e castanheiros na fronteira Brasil/Bolívia
“Contrariando o discurso oficial de que todo o planeta encontra-se compartimentado, na região de fronteira amazônica entre Brasil e Bolívia existem grandes espaços que foram apropriados por grileiros e latifundiários, onde muitas vezes sequer existia a definição de limites, dada a falta de tecnologia compatível com o grau de dificuldade de deslocamento na região. Só recentemente, com o uso de satélites e do GPS, é que se possibilitou melhor visibilidade territorial sem, contudo, ter-se definido até os dias de hoje a legitimidade reivindicada de várias propriedades”.
Essa e outras instigantes questões a respeito da porosidade fronteiriça, no tocante a cidadãos brasileiros e bolivianos, principalmente os que vivem nas cercanias da linha divisória do Estado do Acre (Brasil) e do Departamento de Pando (Bolívia), fazem parte de uma dissertação de mestrado escrita pelo professor José Sávio da Costa Maia, pertencente ao Departamento de História da Universidade Federal do Acre (Ufac), apresentada e aprovada com louvor em abril do ano passado na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob orientação do professor doutor Carlos Alberto Miranda.
Dividida em quatro capítulos, sendo o último reservado para considerações finais, a dissertação de Sávio Maia mapeia as mudanças ocorridas nos modos de vida engendrados pelos brasileiros que habitavam e habitam as linhas de fronteira com a Bolívia, nas áreas de limite daquele país com os municípios de Brasiléia, Xapuri, Epitaciolândia e Assis Brasil, tendo como parâmetro as transformações sócio-culturais, políticas e econômicas do Brasil nas décadas de 70 e 80. Em resumo: como seringueiros e castanheiros ultrapassaram as fronteiras espacial, política, cultural e econômica.
“Tentei demonstrar”, diz o mestre Sávio, “que as travessias dos seringueiros e castanheiros para dentro e fora do território boliviano, bem como as novas formas de cativeiro da terra estiveram nesse período funcionando como continuidade de uma política de exclusão que obedece à lógica do latifúndio. Os depoimentos de seringueiros, castanheiros, sindicalistas e religiosos, em confronto com os projetos pensados pelos governos nos permitem reconhecer uma fronteira indefinida, não mensurável, inconclusa e, mesmo assim, fecunda, que teima em afirmar a necessidade de novas buscas, novos paradigmas”.
Cópias completas da dissertação, intitulada Seringueiros brasileiros e suas travessias para a Bolívia: a formação de novos modos de vida num espaço de litígios (1970-1995), podem ser encontradas na Coordenadoria de Pós-Graduação e na Biblioteca Central da Ufac
DISPUTAS POR TERRA NA BOLÍVIA A PARTIR DOS ANOS NOVENTA - “(...) Para os seringueiros brasileiros que viviam no espaço territorial boliviano, as disputas por terras só vão ser sentidas a partir do início dos anos noventa. O sentido dessa disputa, contudo, estava totalmente deslocado do sentido da disputa anterior vivida no Brasil.
Aqui, eles foram expulsos da terra por não servirem aos propósitos que os novos empreendedores destinavam a elas. Esses brasileiros foram expulsos, também, por não se enquadrarem no projeto implementado pelas elites, com a ajuda do Estado de seu próprio país. Eram brasileiros sendo expulsos e excluídos da produção por outros brasileiros que não lhes reconheciam a condição de existência e não os incluíam em seus planos futuros.
Essa situação apresentava, inclusive, uma questão que é muito presente em nossa história, qual seja: a economia praticamente anulando a sociedade nacional. Subjugando-a e moldando-a a seus interesses.
O que causa mais estranheza no caso desses brasileiros expulsos é o fato de que a partir dos anos noventa, na Bolívia, eles vão sofrer novo processo de expulsão-exclusão, dessa vez motivado por outra relação, a do Estado com as elites.
Com o advento dos bons negócios gerados a partir das exportações de madeiras, a ampliação dos conflitos internos na Bolívia, motivados pelas demissões e retorno do controle das minas para as empresas estrangeiras e a conseqüente ação do governo boliviano para contorná-lo, a história dos brasileiros que lá viviam vai registrar nova tragédia.
O loteamento de terras promovido pelo governo boliviano com vistas a assentar os seus ‘sem-terra’, acompanhado da alegação constitucional de que as áreas de fronteiras, num raio de cinqüenta quilômetros, não podem ser ocupadas por estrangeiros, ocasionará uma mexida geral no regime de ocupação implementado pelos brasileiros que haviam povoado essa região fronteiriça.
Alegando princípios constitucionais e direitos pátrios, os bolivianos recém chegados à região de fronteira vão assumindo paulatinamente os espaços territoriais e confinando os brasileiros a uma situação de sitiados. Quanto adotam a extração de madeiras como atividade prioritária, os bolivianos concordam em usar a mão de obra dos trabalhadores brasileiros como peões de derrubada. Porém, quando se colocam como agricultores ou coletores de castanhas, não há perspectivas de divisão do espaço porque estariam alimentando um concorrente (...)”. (Trecho do capítulo III, Enquanto a modernidade e a nação não chegam, páginas 94 e 95).
*Francisco Dandão