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Coisa séria

por petrolitano publicado 25/01/2012 10h16, última modificação 25/01/2012 10h16
Jornal Página 20, 19.02.2002

Francisco Dandão


Agora que o carnaval já passou, e considerando que ninguém tem muita esperança de que o Brasil possa vir a ganhar a Copa do Mundo, creio que a gente pode começar a falar de coisas mais sérias nesse recém-começado ano de 2002 (a partir de Jesus Cristo, convém não esquecer, que o buraco do passado é muito mais embaixo, bem pra lá de anteontem).

Big Brother? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Doze criaturas confinadas numa casa, se expressando numa linguagem sintética (“Pô, meu, tá com nada não, brother... Tô na minha... Se Deus quiser vô ganhar essa grana... Tô precisando muito, de verdade, mano...), brincando de ver o tempo passar e torcendo pela desgraça um do outro.

Indústria do seqüestro? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Cento e cacetada de milhões de pessoas aprisionadas dentro dos seus lares (algumas sob viadutos, mas deixa esse detalhe pra lá), reféns do próprio medo, correndo risco de morte (e não “de vida”, como erradamente se dizia até um dia desses) à simples aproximação da janela.

Mosquito da dengue? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Um exército de diminutos insetos voadores, que se multiplica em velocidade alucinante, derrubando os nossos organismos complexos, qualquer que seja a sua constituição (anabolizados ou sedentários, todos se quedam amolecidos e de cabeça para baixo ante a picada).

Pesadelo no trânsito? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Velocidade da luz ao som de uma sinfonia apocalíptica, ferros retorcidos cheios de sangue e, na declaração da autoridade responsável, uma lacônica estatística: “Estamos melhorando. No mesmo período, ano passado, foram 8% de acidentes a mais. Ponto, portanto, para a vida”.

Colarinhos brancos? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Dúzias e dúzias de homens impecavelmente vestidos, vetustos senhores alucinados pela ilusão do poder eterno, andando de um lado para o outro em seus carros blindados (a custo do erário, esclareça-se), com visíveis sinais de sujeira no pedaço do tecido que lhes adorna o pescoço.

Sumiço das moedinhas? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Centenas de milhões de reais guardados em cofrinhos de alumínio (ou seria latão?) aporrinhando a vida de quem precisa da fração para não se sentir lesado depois da compra do pão de cada dia e levando o troco em forma de guloseimas, para aumentar a irritação e a taxa de glicose.

Energia elétrica? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje neste país? Freezer desligado, banho frio a qualquer hora (seja noite ou seja dia), para tudo não virar um grande buraco negro, dedo no olho, assombração em forma de trevas. E a conta, pra variar, aumentando, que executivo que se preza ou tem um mínimo de juízo não pode levar prejuízo.

Telefonia celular? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje nesse país? Promessa sedutora de conexão imediata, a qualquer momento e em lugar qualquer. Número na tela delatora, interrupções constantes, zumbidos, chiados, secretária eletrônica (deixar o recado após o bip, que eu nunca posso atender), bateria esgotada, bugiganga pós-moderna.

Eleições de outubro? Pode ser, pode ser. Tem coisa mais séria do que isso hoje nesse país? Discursos vazios não giram pás de moinhos, não movem montanhas, muito menos se traduzem mais numa esperança incontida. O futuro é agora, mesmo que aqui não seja o melhor lugar do mundo. Urna na bunda dos pilantras. Do cesto do lixo se encarrega a história.

Coisa mais séria hoje neste país? Além de tudo isso, creio que só mesmo a célebre frase do presidente francês Charles de Gaulle (1890-1971): “O Brasil não é um país sério!”.