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As filhas de Eva

por petrolitano publicado 30/01/2012 09h34, última modificação 30/01/2012 09h34
Jornal Página 20, 01.03.2002

Fátima Almeida


Eva foi feita de uma costela de Adão, ou seja, ela não veio à existência por si mesma. Desse modo se constituiu o mito da mulher como parte de alguém. Sendo parte é mero acessório e assim também se constitui sua mentalidade: a submissão. As filhas de Eva são, portanto, aquelas mulheres que obedecem fielmente aos seus maridos e, por extensão, aos seus patrões, chefes, acusando e denunciando, muitas vezes, outras mulheres que não estejam dentro dos conformes. Para estas mulheres, as filhas de Eva constroem verdadeiras muralhas, psicológicas e também sociais e culturais, protegendo assim sua prole das más influências e sobretudo a elas próprias do risco de também cair no desvio.

Mas quem serão aquelas mulheres que fogem a toda e qualquer submissão? São as filhas de Lilith, que, segundo Roberto Sicuteri, foi a primeira mulher de Adão, feita por Jeová de excrementos e sangue menstrual, uma mulher escatológica que mal havia sido feita já estava desafiando Adão: “Por que eu tenho que ficar por baixo de você?”, ela perguntava. E Adão ficou assustado com aquela mulher temerária e pediu a Jeová que a afastasse dele. Então, Deus, percebendo a fragilidade de Adão, tentou convencer Lilith a mudar seus maus costumes, sem consegui-lo, porém. Extremamente aborrecido, Jeová não só expulsou Lilith como a condenou ao exílio, nas proximidades do Mar Vermelho, onde passaria a parir, todos os dias, três mil demônios, por todo o sempre. Após meditar sobre a situação de Adão, Jeová fez Eva, da forma como todos nós conhecemos, que, por sua vez, não se rebelou contra o marido, concordando em ficar por baixo.

Vimos, portanto, que a descendência de Eva foi abençoada por Jeová e a de Lilith condenada, sem salvação. No entanto, nunca existiu paz para Adão, pois a imagem de Lilith e tudo o que ela significava passou a constituir seus pesadelos noturnos. Se mesmo Jeová não conseguiu destrui-la, Adão não conseguiu esquecê-la. Por sua vez,  Lilith continua parindo três mil demônios por dia, desde o início da criação, perturbando o sono dos infelizes filhos de Adão.

Esta parece ser a base para vários padrões de comportamento que encontramos na vida diária, nas novelas, nos romances e demais formas de arte dramática. Um exemplo é o clássico do homem que possui uma esposa, tipicamente mulher do lar, prendada,  moldada pelos bons costumes do lugar e, no entanto, procura nas noites de folga as mulheres dos prostíbulos ou qualquer outra que acene com promessas de prazer descompromissado. Não queremos dizer que uma prostituta por ser tal coisa, seja uma filha de Lilith, ao contrário, uma filha de Lilith não se submete jamais aos ditames do patriarcado, e a prostituição é produto obvio do patriarcado, discriminatório e excludente.

Lilith está sempre onde uma transgressão foi provocada, está no filho pródigo que rejeita o papel de macho imposto pela sociedade. Está na mulher que segue seus instintos e desafia as regras. Lilith está, enfim, onde o sexo não segue ordem nenhuma. Todos os seres humanos de certo modo têm um pouco de Lilith em sua própria natureza, em menor ou maior grau. Em menor ou maior grau todos fogem dela também. E, na perseguição de um ideal, todo homem quer uma Penélope e ao mesmo tempo se perder nos braços de Calipso. Essa é a tragédia humana produzida pelo mito da criação.

Historiadora