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Manhã de domingo

por petrolitano publicado 30/01/2012 10h02, última modificação 30/01/2012 10h02
Jornal Página 20, 26.03.2002

Francisco Dandão


Passei a manhã de domingo na companhia dos jornais locais do dia e do livro “Os cem melhores contos brasileiros do século”, antologia da editora Objetiva, organizada por Ítalo Moriconi, professor ligado ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nada de mais, uma vez que eu gosto mesmo de estar lendo uma coisa ou outra. Sempre.

Dessa vez, porém, optando por ficar em casa, mesmo que eu quisesse não poderia ter feito um programa muito diferente. Navegação pela Internet, bisbilhotice na televisão, incursão às minhas dezenas de CDs de música popular brasileira ou jazz, nada disso seria possível. A energia elétrica esteve ausente desde cedo, situação que perdurou até por volta das 13 horas.

Nos jornais, basicamente, nada de novo (nem no conteúdo nem no compromisso). Uma leitura apressada poderia até dar falsamente a impressão de que se tratava dos mesmos do dia anterior, ou da semana passada, ou do começo do mês. Tão iguais e repetitivos na tentativa de fazer a defesa dos seus eleitos e o ataque aos desafetos que parecem antigos.

Já no que diz respeito ao livro, muitíssima coisa pra lá de interessante. Avancei pouco na leitura, é verdade. Cheguei tão somente à página 164, das 618 que compõem o volume. Mas me deliciei com a prosa fértil e fluente de gente como Rachel de Queiroz, Murilo Rubião, Rubem Braga, João do Rio, Carlos Drummond de Andrade e Machado de Assis (precisa dizer mais?).

A manhã de domingo, apesar da falta de novidade dos matutinos e mesmo sem a possibilidade de navegar pela Internet, ouvir música e assistir televisão acabariam não tendo maiores senões, não fosse o fato que originou a falta de energia elétrica: um acidente na entrada do Jardim Tropical, envolvendo um automóvel Peugeot escuro e um poste da rede de eletricidade.

Para meu azar, por volta das 7h30, quando da minha ida rotineira ao centro da cidade para comprar os ditos jornais sobre os quais já escrevi nos parágrafos anteriores, acabei me deparando com uma cena macabra. O carro espatifado no poste não servia para mais nada. Uma multidão de curiosos em volta parecia tão perplexa quanto eu. Chocante, absurdo.

A violência com que o Peugeot se chocou com o poste foi tamanha que este último, apesar de feito de concreto, partiu ao meio. E embora o corpo da vítima - um garoto de 18 anos, de acordo com o que as pessoas em volta comentavam - não estivesse mais no local, era fácil adivinhar a dimensão da tragédia. Não havia nenhuma possibilidade de sobrevivência.

E o pior. Ninguém parecia encontrar explicações racionais para o acidente. Rua quase sem trânsito, asfalto lisinho recém-espalhado sobre uma antiga superfície de buracos, praticamente sem movimento de pedestres (domingo pela manhã, no mais das ruas a cidade dorme preguiçosamente). Talvez o resto de uma noitada regada a tecnodance e muito álcool. Talvez.

No resto do dia, apesar da companhia dos jornais e dos livros, eu não deixei de pensar no Peugeot espatifado contra o poste. Em alguns momentos eu pensava no desperdício da vida que se foi. Em outros eu ficava tentando mensurar a dor dos familiares, dos amigos, dos irmãos, de todos, enfim, que conheciam de perto o garoto vitimado no acidente.

Pensei tanto que resolvi preencher o meu espaço de hoje com essas impressões fragmentadas. São apenas caracteres dispostos numa folha de papel. Muito pouco para transformar consciências de jovens motoristas. Mas a minha ilusão é que alguém leia e tire algum proveito. Vida nenhuma merece virar farelo num poste de iluminação. Muito menos num domingo pela manhã.