Você está aqui: Página Inicial > Notícias da UFAC > Ufac na Imprensa > Edições 2002 > Março > Mulheres de todas as matas
conteúdo

Mulheres de todas as matas

por petrolitano publicado 30/01/2012 09h47, última modificação 30/01/2012 09h47
Jornal Página 20, 13.03.2002

Elane Andrade Correia Lima


Estas palavras, escritas por Estés no livro “Mulheres que correm com os lobos”, talvez sejam as mais adequadas para falar, no início desse século, sobre a gestação das mulheres dos seringais acreanos, que começam a tecer uma nova condição de vida.

A vida dessas mulheres, feita por errâncias e vitórias, produz um efeito de bálsamo diante de nossas angústias produzidas pela desconfiança frente às mudanças, e se constitui de uma força que requer, sobretudo, que prestemos a atenção ao que emerge ao nosso redor, na mata e além dela. Faz-nos aflorar interesses, surpresas, tristezas, anseios, quereres, prazeres e certezas de que nossas raízes arquetípicas da Lilith, a fiandeira do devir, estão em cada uma de nós, não obstante a dominação milenar masculina.

A história das mulheres, em particular das mulheres acreanas, impõe algumas  perguntas: onde se encontra, no plano individual e social, a arte de criar? A arte de reativar a nossa alma? Como realimentar um sujeito social capaz de se perceber como um conjunto de partículas desejantes? As suas  experiências nos fazem descortinar e reunir fragmentos de respostas perdidas no labirinto de nossos medos, pois dá conta de um paradoxo que contém, de forma dissociada, prazer, sofrimento, esperança e desilusões.

Se o resultado desse processo em gestação - desconstrução  da  intransponibilidade da linha entre o possível e o impossível com vistas a um novo jeito de sentir e fazer amor, de sentir e fazer a vida - nos leva a sugerir que essas “Lilithes” nos ensinam uma outra condição da mulher, por outro lado não podemos trivializar as sucessivas rupturas e avanços que alimentam esse devir.

Para gestar um outro patamar da convivência social, o percurso da vida das seringueiras contém, via de regra, três rupturas e movimentos. Em primeiro lugar, a saída do domínio paterno, em busca de uma primeira liberdade. Em segundo lugar, a constituição do casamento, que  consiste na ambigüidade de livrar-se do domínio paterno e submeter-se ao novo homem, ao marido. O terceiro movimento, mais propriamente dramático e fecundo, opera-se com o desencanto do segundo homem, o que requer, a partir daí, garra, obstinação e coragem, para inaugurar outros caminhos, fecundar outros amores e viver por sua própria conta e risco o limite da construção diária de um novo ser, de uma nova mulher.

A nova condição feminina, exemplificada por essas mulheres da mata, talvez nos diga muito mais de uma reflexão fundamental do nosso tempo.   Ao pensar sobre a forma pela qual reconstitui a figura de Lilith,  percebemos que ela, a mulher acreana, especialmente da mata, foi capaz de redesenhar o itinerário da vida humana. Constrói, durante as suas histórias, uma unidade formada pelos símbolos opostos que se complementam: o arquétipo da Anima, que se refere às características femininas no homem, e do Animus, que denota as características masculinas na mulher.

Mediante a conjunção destas raízes simbólicas, a mulher torna-se, ao mesmo tempo, Grande Mãe e Grande Pai, dois arquétipos básicos da psiqué, segundo Duane Schultz (1975). Expressa seu dinamismo de mulher-mãe, regido pelo princípio do prazer, da sensualidade e da fertilidade, como também pelo seu dinamismo de mulher-pai, regido pela ordem, dever e desafio das tarefas. Enfim, faz-se mulher andrógina, orientada pelo florescimento de uma nova condição feminina.

O princípio da reordenação da alteridade torna-se uma estratégia de sobrevivência da mulher da mata, pois para ela essa reordenação representa o resultado de um processo de auto-reconstrução e a forma pela qual se orientou, mesmo sem o saber, na construção de uma nova condição social feminina. Esta alternativa representa um conjunto de possibilidades e emergências, uma vez que transpassa do individual ao social, contribuindo para o repensar a socialidade como um todo.

O convívio dos arquétipos Mãe-Pai, exercido pela mulher acreana, exigiu uma firmeza enorme de querer, sobretudo em se desfazer da vigência patriarcal milenar, uma vez que a reeducação das disposições de submissão demandou muito tempo e muita determinação. Esta postura feminina revolucionou as relações afetivas e sexuais e tornou-se capaz de se confrontar com a própria sombra, propiciando o encontro tencional e criativo entre mulheres e homens, Animas e Animus, Grande mãe e Grande Pai, para fazer emergir novas relações entre os sexos na sociedade atual. 

A Lilith florestal, a partir de então, apresenta-se à vida por inteiro, sem se restringir aos espaços privados; atém-se a ele, como também ao espaço público. Insere-se ao mercado de trabalho, na busca da produção de sua subsistência e de seus filhos, assim como começa a atuar nas esferas sociais, morais emocionais, de maneira a  se elevar, fazendo ascender o nível familiar. Visando transpor o contexto de dificuldades à liberdade, fortalece-se, tecendo estratégias para garantir sua integridade moral, socioeconômica e familiar, imprimindo ainda uma visão social transformadora sobre os valores tradicionais.

A compreensão de que o marido é simplesmente o outro e não sujeito de sua vida, faz da mulher acreana pinçar as vontades localizadas no mais longínquo oceano do esquecimento de si mesma. O despertar desses desejos recônditos  condiciona-a à construção de alternativas para viabilizá-los, e assim se descobre Mulher. Estando a partir de então, face a face consigo mesma, promove uma verdadeira revolução individual, familiar e social. Assim, dentro dessa mobilidade de fazer-se e refazer-se, repensa também as suas relações afetivo-sexuais, entendendo-as a partir do amor, sombreado pelos princípios de amizade. Fundamenta às relações mediante a sintonia das noções de reciprocidade, comunhão de idéias, de quereres com as do amor erótico e espiritual, e a amizade desponta aqui como um alicerce indispensável aos enlaces amorosos, firmando e florescendo as relações.

Neste movimento cria a fusão entre mulher objeto e mulher sujeito. Além de se buscar inteira, vislumbra o encontro com o outro também inteiro, desmanchando o princípio do amor como expressão da sua “cara-metade” . A mulher da mata  não compreende que “o coração de quem ama fica faltando um pedaço que nem a lua minguando que nem o meu nos teus braços”, como  diz Djavan, uma vez que, historicamente, busca a liberdade, enfrentando com firmeza os percalços do medo de ser livre para amar, pois compreende que “medo de amar é o medo de ser livre para o que der e vier, livre para sempre está onde o justo estiver; O medo de amar é o medo de ter dia todo momento escolher com  acerto e precisão, a melhor direção; É o medo de não arriscar, esperando que façam por nós o que é nosso dever, recusar o poder; O medo de ser feliz para o que der e vier”, segundo Beto Guedes.

E esta criatividade faz do ato de tecer a vida uma arte, a arte de recomeçar, de coser e arrematar os fios da vida, cuja cadência se torna um vai e vem de forças que tonalizam a nova condição feminina dessas mulheres. “Morei em vários seringais, abri muitas estradas..., limpei muitos campos...” (Carmélia, 2000). A Lilith da mata, como toda arte, é visceral, não cerebral;” ela sabe rastrear e correr, convocar e repelir. Ela sabe sentir, disfarçar e amar profundamente” (Estés, 1999, p. 27). Estes ensinamentos foram certamente germinados no movimento equilibrado entre mulher, fauna e flora, cuja sintonia a tornou uma incubadora da relação da vida-morte-vida.

A história das mulheres acreanas pode ser uma forma de perceber o processo de reconstrução da condição feminina, pois, ao manterem-se revigoradoras de sonhos de criação, as mulheres das quais falamos aqui, tornam-se fiandeiras de quereres e prazeres individuais e sociais. Esses prazeres e quereres foram seqüencialmente demolidos e ressurgidos das cinzas do ilícito, do proibido, ao longo de suas histórias de vida e do Acre.

Por isso que, ao conhecer a mulher da mata, ela se torna referência às nossas desilusões, sofrimentos e esperanças, pois deixa, em seu rastro, a alma de quereres sem limites, que enchem as mulheres de vontade de encontrá-la, libertá-la e amá-la, (...) Ela é idéia, sentimentos, impulsos, recordações. Ela ficou perdida e esquecida por muito tempo. Ela é a fonte, a luz, a noite, a treva e o amanhecer. Ela é o cheiro da lama boa e a perna traseira da raposa (...). Os pássaros que nos contam segredos pertencem a ela. Ela é a voz que diz: - Por aqui, por aqui. (Estés, 1990,  p. 27).