Ensaio sobre a chuva
Via de regra, a chuva é sempre sinônimo de nostalgia. Sem mais nem menos, quando a gente olha para a chuva através de uma janela se perde em devaneios. O olhar estica rumo ao infinito, o pensamento meio que escapa para um canto qualquer do mundo imaterial e os minutos tratam de desaparecer num ralo qualquer engendrado pelo tempo.
Em algumas pessoas a chuva vista pela janela dá uma vontade louca de fazê-las tirar a roupa e correr para uma longa sessão de abraços com os pingos. Em outras, a vontade estabelecida é a de se meter sob um cobertor, dormitar como um gato de madame e deixar o tempo rolar. Levantar? Somente quando o sol resolver que é hora de trazer a estiagem.
Eu sou daqueles que se perdem em devaneios (olhando pela janela, me molhando na biqueira de casa, dentro do carro com os vidros embaçados ou sob o calor do cobertor, tanto faz) quando chove (qualquer que seja a chuva, chuvisco ou torrencial, todas servem). As idéias dançam alucinadamente, os planos se sucedem e os sonhos quase ficam a um toque dos dedos.
O meu grande problema é a desordem (eu escrevi “alucinadamente” no outro parágrafo) de como esses pensamentos ocorrem. Tão atropelados que logo depois da ação não resta muito deles. Parece até que eles descem pelos esgotos da cidade e se misturam com as águas dos rios e viram vapor e sobem às nuvens e se derramam outra vez na chuva seguinte sobre a minha cabeça.
Ontem foi um dia desses de chuva e devaneios. Agravante: a chuva despencou no final da tarde, quando a proximidade da noite faz tudo parecer ainda mais escuro e sombrio. Numa cena dessas, hipnótica, catatônica, nem preciso dizer (mas acabo dizendo): os meus neurônios se escafederam para o seu esconderijo secreto e me deixaram entregue às minhas próprias mãos.
Reproduzir tudo, tudinho mesmo, o que eu pensei naquele par de horas que antecedeu o entardecer de ontem seria uma tarefa impossível para mim (talvez haja um registro em algum livro divino, só que eu não tenho a senha). Mas vou tentar, nas linhas que seguem até o final do espaço que me compete preencher nesta... Que dia é hoje mesmo?
Não há uma ordem nas minhas lembranças. Só sei que em algum momento me peguei com uma vontade enorme de dedilhar o violão do Sérgio Souto, que eu fiquei sabendo estar à venda pela crônica do Archibaldo Antunes. Comprá-lo, dedilhá-lo e devolvê-lo ao menestrel, porque, eu tenho certeza, sem o Sérgio aquele violão se quedará mudo no fundo de um baú.
Em outro instante, o que me bateu forte foi um enorme sentimento de impotência diante da inevitabilidade do salto no desconhecido. Num lampejo, as imagens sobrepostas de Aníbal Tinôco e Esther Maia, ambos meus professores no tempo de ginásio no Colégio dos Padres, que nos largaram órfãos nesses últimos dias. Chamas incandescentes que a gente deixou apagar.
E num outro momento, imagino que influenciado por uma música instrumental ligeira vinda de um lugar indefinível (creio que da sala vizinha à minha), sem mais nem menos, me salta às têmporas a lembrança dessa tragédia com a nave americana. Já escrevi sobre isso, eu sei. Mas depois da minha escrita surgiu um fato novo: o de que os tripulantes sabiam que explodiriam.
Como se pode ver, a ligação da energia geradora dos meus pensamentos com a razão numa tarde de chuva não tem nada a ver. E assim, acabo o meu texto de hoje sem saber se sigo Schopenhauer, cujo pessimismo dizia respeito àqueles que renunciam à vida, ou Nietzsche, para quem aceitar a vida em sua dolorosa tragicidade é que seria o verdadeiro pessimismo.
Humano, demasiadamente humano. Pelo menos enquanto chove...
*Francisco Dandão