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Hanseníase no Acre: do isolamento ao exame de DNA

por Ascom02 publicado 06/11/2012 07h57, última modificação 06/11/2012 07h57
Jornal AgazetadoAcre.com, 06 de novembro de 2012
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Nesta segunda-feira, 5 de novembro, a Universidade Federal do Acre  concedeu o título de Doutor Honoris Causa, ao médico irlandês William John Woods, que vive  no Acre desde  a década de 60. Ele já foi condecorado pela Rainha Elizabeth, da Inglaterra, com o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico. As duas homenagens são pela luta do médico em diminuir os casos de hanseníase na Amazônia. Nas décadas de 70 e 80, em pequenos aviões, barcos, canoas, lombo de animais e muitas horas a pé, ele levou os medicamentos que tratavam e curavam a hanseníase, para moradores de seringais, aldeias indígenas, localidades ribeirinhas e locais de difícil acesso no Acre.

Willian, ou Dr. Guilherme, como ficou conhecido por aqui, chegou ao Acre na década de 60 como missionário Batista. Mas, vendo o sofrimento de seringueiros nas matas acreanas que perdiam pedaços do corpo, por causa da hanseníase, ele foi estudar medicina na Universidade Federal do Amazonas, onde se formou em 1974. Voltou para o Acre e passou a ser o “médico da hanseníase”. Inicialmente, usava a dapsona, única droga conhecida para tratar a doença. Só a partir de 1986, o Ministério da Saúde, passou a utilizar na rede pública de saúde, a poliquimioterapia, três medicamentos, que curam de fato a hanseníase. Dr. Guilherme continuou as viagens com o novo tratamento e a realidade acreana com relação à hanseníase mudou. Na década de oitenta, o Acre era o primeiro do Brasil em número de casos de hanseníase. Eram 3.419 casos no estado em 1985 e no ano passado, foram apenas 228. Os números deste ano só serão divulgados em março de 2013.

Atualmente com 75 anos, já aposentado, o médico continua atendendo diariamente no Centro de Referência Estadual de Hanseníase, em Rio Branco, e ainda faz pequenas viagens pelos seringais da região. Avesso a entrevistas, ao receber o título da Ufac, Dr. Guilherme, lembrou que tudo o que fez foi para “ajudar o próximo”, e que faria tudo de novo.

De acordo com o presidente nacional do Morhan, Arthur Custódio, o Acre “fez bem o dever de casa e passou de último para o décimo lugar na eficácia do combate à hanseníase. Capacitou bem o pessoal, fez a profilaxia, descentralizou o tratamento”. Segundo Arthur a mudança começou na década de oitenta e agora o diagnóstico e tratamento são os mais rápidos do Brasil. Ele reconhece a importância do trabalho desenvolvido pelo médico Irlandês. “Não adiantava nada ter o remédio se não havia como levá-lo aos doentes em localidades de difícil acesso. O Dr. Guilherme teve essa coragem e salvou milhares de vidas”.

Hanseníase: desde a Bíblia histórias de dor e separação
Não há data certa, mas estima-se que a hanseníase exista desde o século sete Antes de Cristo. Na Bíblia, a doença já é citada como segregadora. Em vários países do mundo, os portadores da doença foram mortos queimados, expulsos de casa e os filhos foram tirados à força e levados para entidades criadas para esse fim.    No Brasil, os presidentes seguiam o modelo adotado por Benito Mussolini, na Itália, que tinha o tripé: leprosário (que cuidava dos doentes) dispensários (que examinava os parentes e pessoas com contatos com os doentes) e os preventórios (que abrigavam os filhos dos doentes).

Em 1949, um decreto do presidente Eurico Gaspar Dutra tornou ainda mais dura a vida dos hansenianos. O decreto determinou a sumária retirada das crianças de perto das mães assim que elas nasciam. Durante mais de sessenta anos, filhos foram separados dos pais hansenianos em todo o Brasil. No Acre, cerca de duas mil crianças, que nasceram nas colônias de hansenianos em Rio Branco e Cruzeiro do Sul, foram levadas para os preventórios, onde muitas foram adotadas, outras esquecidas e algumas morreram. Muitas famílias foram desfeitas para sempre.

Francisca Elba Batista, ainda na adolescência, foi levada para a Colônia Hernani Agrícola em Cruzeiro, junto com o marido, que também tinha a doença. Os cinco filhos foram levados para o Educandário: a mais nova, Maria de Fátima, foi tirada dela com quatro horas de vida. Quase 17 anos depois, já curada, ela foi em busca dos filhos. Mas o único homem do grupo havia sido adotado. “Eu fui atrás dele, mas ele não quis saber de mim”.    Maria de Fátima, a filha mais nova de Francisca Elba, diz que nem gosta de lembra da infância e parte da adolescência. Chora ao lembrar que cresceu pensando que a mãe havia abandonado todos eles. “Ninguém contava que ela e meu pai estavam doentes e internados. A sensação que a gente tinha era de abandono. Todas as crianças internadas lá tinham esse mesmo sentimento”, relata ela com o filho pequeno no colo.

A coordenadora do Departamento de Hanseníase no Acre, Francieli Gomes, diz que a hanseníase sempre foi acompanhada por muitos mitos: um deles é que os pés e mãos dos doentes se desprendiam e caiam.  Ela conta que os portadores de hanse-níase perdem os membros por causa de infecções “que qualquer pessoa pode ter” . “A bactéria que causa a hanseníase ataca a pele e os nervos. Essas pessoas ficam sem tato, por isso se machucam e acabam com osteomielite, uma infecção que pode resultar na perda de dedos”, explica.

Manchas brancas sem tato, suor ou pelo são os primeiros sintomas da doença, que diagnosticada precocemente, pode ser tratada entre seis meses a um ano. Todo o tratamento é gratuito na rede pública de saúde.

Exames de DNA comprovam laços entre parentes separados pela hanseníase
O Movimento de Reintegração dos hansenianos, o Mor-han nacional, está realizando exames de DNA para descobrir parentes de pes-soas que foram levadas para os preventórios e por vários motivos, não conseguiram reaver as famílias. Os exames são feitos em nove estados, incluindo o Acre, onde o Instituto Nacional de Genética Médica Populacional, já entregou mais de 100 resultados de exames.

A médica geneticista Lavínia Faccini conta que dos nove estados onde realizou os exames, o Acre é onde há o maior índice de pessoas que não reencontraram os pais ou irmãos, quase 200. “Essa dificuldade é porque nos preventórios daqui muitas crianças não eram identificadas sequer pelo primeiro nome dos pais. A direção desses locais queria proteger as crianças do preconceito e jamais diziam que eram filhos de hansenianos para que fossem logo adotados. Faziam de tudo para apagar todos os laços e por isso, muitas pessoas de quem coletamos o material não reencontraram parentes, porque não sabia nem como começar a procura”.

Seu Paulo Bernardo dos Santos, 63 anos, foi beneficiado com o exame de DNA. Ele conta que, escoltado pela Polícia Sanitária, levou os quatro filhos que nasceram na Colônia Souza Araújo, para o Preventório de Rio Branco, hoje conhecido como Educandário Santa Margarida. Quando saiu da internação buscou os filhos e descobriu que uma havia morrido e um tinha sido adotado por um parente próximo. Ele pegou de volta dois dos filhos e “correu atrás” do adotado. Em 2011 fez exame de DNA junto com o filho e conseguiu provar que era pai de fato do homem que hoje tem 36 anos e prefere não aparecer nas fotos ao lado da família. “Meu filho achava que era meu sobrinho. Depois do exame, ficou revoltado comigo e com o tio que o criou como pai. Agora ele já tá mais próximo da família e entendeu que ninguém teve culpa do que aconteceu”, relata Paulo Bernardo.

José Peixoto, de 81 anos, era do serviço de profilaxia da hanseníase em Cruzeiro do Sul, a Polícia Sanitária. Ele diz que muitas vezes teve que levar crianças das colônias para os preventórios. “A gente sofria junto com as mães, ouvia o choro das crianças. Mas a ordem era essa e o objetivo era que as crianças não fossem contaminadas pela hanseníase”. Uma das crianças que levou para o Educandário, ele mesmo adotou e cria até hoje como filha.

Segundo o presidente nacional do Morhan, Arthur Virgílio, o Acre tinha uma das polícias sanitárias mais rigorosas do Brasil e revela: “mesmo com o tratamento disponível, o governo Getúlio Vargas, por exemplo, continuava separando pais e filhos, porque muitas colônias e preventórios foram construídas na época e tinham que continuar ocupadas”.

Indenização e títulos definitivos de propriedades
Uma lei de 2007, do então senador Tião Viana (PT/AC), garantiu o direito à pensão dos hansenianos que foram isolados em Hospitais Colônias por causa da hanseníase. Cada um recebe R$ 950 mensais. Agora os filhos, que foram separados compulsoriamente dos pais, também buscam o direito à indenização. Uma Comissão da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República esteve no Acre fazendo levantamento da situação. O presidente do Morhan no Acre, Elsom Dias, diz que todo o trâmite deve ser concluído em 2013. O valor pode variar entre R$ 50 e R$ 70 mil para cada um.  De acordo com o Morhan nacional, cerca de 25 mil filhos de hansenianos, que foram separados dos pais devem ser beneficiados. No Acre, são mais de duas mil pessoas.

E o Acre é o segundo estado do Brasil (o Rio de Janeiro foi o primeiro) a conceder títulos definitivos de propriedade para os hansenianos. Em Cruzeiro do Sul, o Instituto de Terras do Acre (Iteracre) entregou cem títulos no Bairro do Telegrafo, criado ao redor do Hospital Colônia Souza Araújo. Em Rio Branco, mais de mil e quinhentos títulos serão entregues nos bairros Santa Cecília e Albert Sampaio, ambos ao lado da Colônia Souza Araújo. “Tudo o que se fizer por essas pessoas ainda será pouco”, explica o presidente do Iteracre, Glenilsom Araújo.

Francisca Soriano, de 81 anos, que mora no Bairro do Telegrafo, em Cruzeiro do Sul, diz com orgulho que agora é dona de fato e de direito da casa onde mora. Ela também recebe mensalmente a pensão de R$ 950 desde 2009. Com o dinheiro já conseguiu reformar a casa e em agosto, recebeu o título definitivo da casa onde mora.

Por causa da lei da internação compulsória, ela que foi retirada da sala de aula pela Polícia Sanitária, aos 12 anos e levada para a Colônia Hernani Agrícola. Ela relata emocionada que chegou a pensar que “nem era gente, não tinha direito sequer a morar com os pais. Agora recebo pensão, posso me consultar, comprar comida melhor para casa e agora eu recebi o título da minha casa. Tudo o que foi tirado de mim na adolescência, casa e cidadania eu tenho de volta hoje  e me sinto uma cidadão acreana feliz”, ressalta.

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