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Pandemia e primeira infância

Esse texto foi elaborado pela discente Mayury Kawany Neves da Silva supervisionada pela professora Maria Liliane Gomes dos Santos.
publicado: 30/09/2021 14h49, última modificação: 30/09/2021 14h49

Diante da pandemia do COVID-19, o modo de viver passou por inúmeras mudanças e transformações, fazendo com que adultos e crianças tivessem que se adaptar às novas condições.

Mas e no caso das crianças muito pequenas? Como a pandemia e o isolamento social pode afetar as crianças de 0 a 3 anos? Talvez essa não seja uma interrogação comum a nossa sociedade pelo próprio ideário construído acerca desse período da vida, ou ainda essa interrogação se faça presente apenas ligada à ansiedade de desempenho característica da sociedade neoliberal e que recai também sobre o campo da infância.

O fato é que esse é um período único para o desenvolvimento. Em psicanálise, o termo desenvolvimento não remete a compreensão de marcos mais ou menos universalizados a serem alcançados, mas sim ao aumento progressivo de expressão da singularidade e possibilidade de ação enquanto ser de desejo no mundo, apesar dos limites que a realidade impõe. É na primeira infância que a criança se constrói simbolicamente na sua relação com o outro e aos nove meses as bases da estrutura de uma criança já estão constituídas (Dolto, 2017/1982).

Segundo a psicanalista Françoise Dolto (2017/1982) a comunicação está dada desde a vida fetal e os bebês não tem fome apenas de leite materno ou alimento, mas de se vincular ao outro, serem reconhecidos enquanto sujeitos de palavras que possibilitem a constituição de si e da sua possibilidade de existir no mundo enquanto seres de desejo.

A não inscrição dos bebês na ordem da fala pode gerar o equívoco do não reconhecimento deles enquanto seres de linguagem e comunicação. E é nesse ponto que a pandemia e o isolamento social podem incidir sobre as crianças de 0 a 3 anos, de modo ainda mais devastador que sobre os adultos e as crianças mais velhas. É possível pensar em diversos aspectos da experiência dos bebês durante a pandemia. Se os bebês antes podiam ter contato com a família ampliada, avós, tios, primos etc, em muitos casos o isolamento limitou essa interação apenas aos cuidadores imediatos, podendo inclusive não ter contato com nenhuma outra criança, o que Dolto apresenta como uma relação que difere da relação criança-adulto por estarem as crianças de uma faixa etária próxima em um nível fantasmagórico semelhante. Outro aspecto é a disponibilidade desses cuidadores de entrar em uma relação construtiva com o bebê. Dolto compreende que a mãe (cuidadora(s) ou cuidador(es) principal) é a mediadora da vida, atravessada ela própria pela vida. Essa pessoa está vivendo uma pandemia mundial, ela tem angústias e sofrimentos que podem permanecer como um não dito para o bebê, o que pode ser de uma angústia desestruturante. Imagina um ser totalmente vulnerável e dependente chegando ao mundo em um momento como este e percebendo a angústia dos que o cercam, mas que não o dirigem a palavra para lhe informar o que está acontecendo. Por isso, é importante o movimento de nomear o mundo para o bebê. Seu corpo e as atividades que o envolvem, seu ambiente, seus possíveis afetos, desejos e angústias, as condições emocionais dos cuidadores e as condições do mundo. Os bebês entendem tudo. Tudo.

Não só compreendem, como apresentam um papel ativo na comunicação. Françoise Dolto indica que os bebês se expressam com outros recursos antes da fala, tais como o choro, mímica, balbucios, corpo etc. E entrar em uma conexão que reconheça esse lugar das interações com os bebês é o que possibilita a construção de um vínculo que promova uma imagem de si constante que permite atravessar as ausências, faltas e dificuldades do real. Para isso é importante reconhecer que as trocas com os bebês ultrapassam o nível da necessidade "a verdadeira relação unificante e tranquilizadora é a relação de palavra, porque vem do ser que representa a segurança para a criança, ou porque ela fala para a criança dessa segurança essa palavra é insubstituível e nenhuma satisfação de objeto parcial ou de zonas erógenas a substituirá" (Dolto, 2017/1982, p.64).

Referência


Dolto, F.(2017). Seminário de psicanálise de crianças. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes (Publicado originalmente em 1982).